110 Seminário de junho: A bruxaria e o marketing digital
Desamparados pelo sistema, camponeses recorrem aos «desbruxadores»
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Aviso: Seminário «A bruxaria e o marketing digital»
O grupo Anorexia e desejo mimético foi um sucesso.
Em junho, proponho uma nova discussão pautada pela teoria mimética. Até que ponto a bruxaria, ou melhor, o «desbruxamento», pode ajudar a entender a situação cultural da direita brasileira, e sua relação com o marketing digital? Você pode ler abaixo um texto que preparei a respeito do assunto.
— Quatro encontros por Google Meet, às quartas, das 20h às 22h, em 5, 12, 19, e 26 de junho.
— As reuniões são gravadas, e as gravações são enviadas para os participantes até o dia seguinte.
— Como a acusação de bruxaria está diretamente ligada ao mecanismo do bode expiatório, este será um tema fundamental.
— Também discutiremos o desbruxamento enquanto terapia.
— Pagamento por PIX: R$ 400 para ps@pedrosette.com (envie o comprovante para eu acrescentá-lo ao grupo). Se você for assinante pagante da newsletter, faça um PIX de R$ 365.
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O «desbruxamento» segundo Jeanne Favret-Saada
Imagine ler um livro curtinho sobre a bruxaria no noroeste da França entre 1969 e 1971 e ter a sensação de estar lendo a respeito do Brasil de hoje, de uma direita à mercê do marketing digital. Foi graças a essa analogia, que se impôs a mim desde o começo, que Désorceler, de Jeanne Favret-Saada (publicado em inglês como The Anti-Witch) chegou a me tirar o sono numa noite do começo de maio.
Porque, para começar, eu não sabia que «bruxo» era um termo tão acusatório quanto «extrema-direita». Assim como ninguém diz: «olá, bom dia, eu sou de extrema-direita, e faço minhas extremodireitices por aí», ninguém, ao menos naquela região francesa, saía dizendo por aí: «olá, sou bruxo sim, meu negócio é lançar meus bruxedos». Ser acusado publicamente de bruxaria era algo extremamente grave — a acusação podia dar briga, e a briga pararia na polícia. «Bruxaria» era necessariamente algo ruim que faziam com você. A bruxaria «do bem» seria um «desbruxamento» (daí o título francês do livro Désorceler, desbruxar).
Na situação descrita por Jeane Favret-Saada, doravante JF-S, uma pessoa, acometida por uma série infortúnios aparentemente sem explicação — as vacas não dão leite, o filho ficou doente, o carro dá problema — de repente ouve de um terceiro, denominado «anunciador»: «Eu sei o que está acontecendo com você. Eu já estive no seu lugar. Você foi embruxado.»
(Sim, estou dizendo «embruxado», que em francês é ensorcelé, e evitando «enfeitiçado», que seria envoûté. Não cabe explicar aqui os preciosismos tradutórios, mas eles têm razão de ser.)
O embruxado está numa situação de desamparo também cultural. O médico, afinal, nem resolve o seu problema, nem leva a sério a ideia da bruxaria. Os padres também não, ainda mais os «modernistas». JF-S fez sua pesquisa em 1969, ano em que foram celebradas as primeiras missas no rito novo, em língua vernácula e não em latim, por padres que já tinham abraçado o racionalismo e rejeitado as superstições. O que o camponês queria era um bom padre à moda antiga, que falasse latim e fizesse rezas (em latim) contra as obras do demônio. Ele, como muitos de nós, não queria apenas uma explicação que nem serviria de consolo, mas algo que parecesse uma solução.
Desamparado, mas tendo encontrado um «anunciador» — é o termo escolhido por JF-S — que tem a autoridade do «eu já estive onde você está agora», o embruxado é levado a um desbruxador. Agora, o embruxado está no mundo da pura violência: o bruxo é seu inimigo, deseja seu mal inequivocamente. É preciso saber quem é o bruxo.
Porém, tudo isso é tão grave que o linguajar usado é indireto. São usadas frases como «aquele que fez isso com você» e meros xingamentos. Não há nenhuma diplomacia; a guerra é total. O «tratamento» proposto pelo desbruxador vai durar meses, e vai culminar num duelo simbólico com o bruxo, em que o desbruxador fará coisas como enterrar alfinetes num coração de boi ou fritar sal grosso numa panela, enquanto narra uma batalha com seu inimigo imaginário.
Porque, enfim, mesmo que embruxado e desbruxador cheguem a nomear o Fulano que Fez Isso com Você, a recomendação é não ter nenhum contato com essa pessoa, nem sequer responder um bonjour ouvido em plena rua. (Uma pessoa que tivesse o seu bonjour recusado logo saberia que está sendo vista como bruxa, e poderia partir para a agressão ali mesmo.) Daí vêm as lendas: «Você sabia que, na hora em que o Desbruxador fez o Desbruxamento, o Fulano Bruxo teve de ser levado às pressas para o hospital? Pois é…
Jeanne Favret-Saada ainda acrescenta, tendo trabalhado muitos anos como psicanalista, que o desbruxamento é uma terapia eficaz, como ela própria observou. Os embruxados chegam abatidos nas consultas com os desbruxadores e logo vão melhorando. Saem animados, dispostos. E o método para garantir esse sucesso não poderia ser mais girardiano: o desbruxador consegue que cada pessoa, que se julga uma mera vítima, boazinha e inocente por definição, comprometa-se sem perceber com a violência — a mesma violência praticada pelo bruxo. Ela está num simples duelo, mas vive esse duelo simbólico como a luta entre o Bem e o Mal.
Ainda haveria muito, muito a dizer, e eu mesmo pretendo começar esse próximo seminário falando dessa «bruxaria» que consiste no poder acusatório das palavras, e de como o mundo da bruxaria do mato francês permaneceu fechado para a etnógrafa que veio de Paris para conhecê-lo até que ela passasse a ser vista como embruxada pelos habitantes locais. Essa é uma questão fundamental: quem tem autoridade para falar de nós, se não um de nós? Não é isso que vemos hoje com a noção de… lugar de fala? Antes que Jeanne Favret-Saada fosse incorporada à região, ninguém falava com ela, todos negavam veementemente a existência da bruxaria, ninguém queria ser chamado de camponês otário pelos janotas de Paris.
(Ligue a legenda do vídeo, peça a tradução automática.)
A direita brasileira de hoje
Depois de apresentar, muito rapidamente, o primeiro termo da minha comparação, falta apresentar o segundo: a direita brasileira de hoje, à mercê dos marqueteiros digitais.
Imagine um brasileiro que se sente desamparado pela cultura oficial. Para ele, o governo mente e omite. A escola não ensina. A universidade, então, é um antro de esquerdistas. O jornalismo é indiscernível da propaganda.
Os «janotas de Paris», os representantes da cultura oficial (governo, escola, universidade, mídia…), ainda enxergam nele um sujeito retrógrado, ridículo. Naturalmente, ele se fecha.
Aliás, não preciso nem mesmo falar desse fechamento como se falasse de um «eles». Eu mesmo, eu, Pedro, caso fosse procurado por qualquer jornalista para falar sobre questões da direita, recusaria terminantemente o convite. Da última vez em que falei com uma jornalista — Consuelo Dieguez —, logo após a eleição de Bolsonaro, se eu não tivesse me esforçado para evitar dizer qualquer coisa que pudesse ser tirada de contexto, provavelmente teria aparecido no livro que ela escreveu, intitulado nada menos do que O ovo da serpente. Anos antes, o jornalista James Cimino pedira que eu falasse à Folha de São Paulo a respeito da missa tridentina. Recusei — e graças a Deus, porque a matéria enfim publicada tinha como tema, na verdade, o antissemitismo na Igreja. E vejam que nem falo daqueles que escreveram mas nem sequer tentaram falar comigo…
Essa situação em que as palavras, com sua magia acusatória, provocam cisões — as «bolhas» também parece estar sendo vivida por todos os brasileiros. Não preciso repisar a ideia de que o eleitor de X hoje prefere nem falar de política com a família que prefere Y. Ninguém quer ser chamado de «extrema direita» ou de «esquerdopata».
Não sei como está a vida dos esquerdistas, mas sei que o direitista, sentindo-se desamparado pelo sistema (e também querendo padres que falem latim, aquela coisa toda), passa por infortúnios como qualquer pessoa. Por que ele não consegue largar aquele vício? Por que não consegue sair daquela situação? Por que ainda não tem tal coisa?
Porém, o direitista não precisa ser surpreendido por um «anunciador» que venha lhe dizer: «Você está embruxado». Ele tem marqueteiros, que passam o dia mapeando «dores da persona» («persona» é um termo de marketing que designa o cliente ideal) para poder criar anúncios que digam, à sua maneira: «Você está embruxado! Eu já estive na sua situação e vou contar a minha história!» Esse marqueteiro, esse «co-produtor», cria o anúncio para um influenciador, o qual assume o papel do desbruxador que vai fazer o desbruxamento.
Além disso, o produto online oferecido é sempre um objeto de força. O direitista online brasileiro está imerso na guerra cultural, ou simplesmente numa mentalidade belicista. Ele está se preparando para um confronto. O anunciador / marqueteiro e o desbruxador / influenciador estão apontando para um inimigo, descrevendo a situação nos termos de um duelo, e prometendo uma força maior, capaz de vencer a maldade.
Alguns problemas restantes
Agora, simplesmente dizer que essa descrição da realidade é falsa e rir dela equivale a assumir o papel dos janotas de Paris e, pior ainda, não entender nada. Noto isso há décadas: para entender as palavras, é preciso ver quem as diz, para quem, em qual situação. É muito fácil rir de um liberal que chama de «socialista» qualquer pessoa que defenda algum planejamento estatal, e é também um modo de não pensar. A pessoa de esquerda que ri do direitista que usa a palavra «comunista» sem rigor acadêmico nunca se pergunta se «fascista» não é apenas um xingamento, tão verdadeiro quanto a insinuação de que a mãe de alguém realmente era, como se diz hoje em dia, uma trabalhadora sexual.
Também é indispensável notar, com Jeanne Favret-Saada, que o processo do desbruxamento na França de 1970, assim como o projeto de empenhar-se em alguma guerra simbólica no Brasil de 2024, pode funcionar como uma terapia, ou ter algum efeito francamente benéfico. JF-S notou que os clientes da desbruxadora que acompanhou por alguns meses entravam nas consultas cabisbaixos, mas saíam energizados. Um homem que acompanhe um influenciador e assim abandone vícios e passe a ter uma vida mais estável também recebeu um claro benefício.
Agora, como isso acontece? Aqui entra uma das questões que mais me interessa. Já mencionei que o desbruxamento ocorre por meio de um sutil comprometimento com a violência. Estranhamente, a nossa direita cristã da internet parece muito mais abertamente comprometida com a violência, uma «violência do bem», do que aqueles franceses de décadas atrás, e me pergunto se isso não sinaliza, talvez, que o brasileiro tem uma sensação ainda maior de desamparo em relação ao «sistema» do que sua contrapartida francesa, precisando ser inequivocamente envolvido numa batalha.