129 O romance da direita
E uma errata fundamental sobre os dias do Seminário de Fevereiro
ERRATA FUNDAMENTAL
O Seminário de Teoria Mimética na verdade começa no dia 12, quarta-feira: eu é que errei a data. O dia tradicional dos Seminários é quarta-feira. AS AULAS SERÃO GRAVADAS E REPASSADAS AOS INSCRITOS. Teremos grupo de WhatsApp e tudo.
O romance da direita
Releio Mentira romântica e verdade romanesca. No começo, uma passagem a respeito de como os personagens de Stendhal «leem a história como se fosse literatura». Penso na Mathilde de la Môle de O vermelho e o negro, que queria ser como sua antepassada Marguerite de Langlois, ninguém menos do que a «rainha Margot» do filme. Mas penso também na nossa direita brasileira, que deseja que lhe seja ensinada uma história do Brasil que tenha modelos exemplares. Uma história, em suma, que possa ser lida como literatura, porque todos nós às direitas somos um tanto Dom Quixote, querendo seus heroicos romances de cavalaria, um tanto Emma Bovary, querendo uma certa intensidade de sentimentos, um tanto Mathilde de la Môle, que quer as duas coisas juntas.

E então me ocorre que talvez essa seja uma das diferenças entre a «disposição de direita» e a «disposição de esquerda». A direita é profundamente uncool. Eu sou profundamente uncool. Aliás, uncool among the uncool, and not in a cool way. Sou como Mathilde de la Môle, como Emma Bovary, um tanto indignado com a banalidade do presente e mais indignado ainda porque aparentemente «ninguém» está respeitando os grandes modelos.
Sim, admito, se a frase de Escrivá sobre «transformar a prosa de cada dia em poesia heroica» me dá nos nervos, é porque prefiro esconder o quanto ela mexe comigo. Porque ser cool é agir como se você não precisasse de modelos, não tivesse modelos, como se você apenas fosse o modelo, imitado sim, imitador nunca; e ser uncool é ter perpetuamente exposta, involuntariamente exposta, essa carência, essa admissão de que a vida precisa ser justificada, «transformada em poesia heroica», porque o que aí está não pode estar bom.
A esquerda pode, num raro momento de fraqueza — perdão, de vulnerabilidade —, admitir, como Fleabag e Lenu na newsletter passada, que querem alguém que lhes diga por onde andar, aonde ir. Mas esse alguém é alguém próximo, um namorado, uma namorada. Na direita, não: você quer o Grande Livro, o Grande Mestre, Subir nos Ombros de Gigantes. O esquerdista se pergunta se será aceito pela patota; o direitista, se será aceito por São Tomás de Aquino.
Não que eu esteja querendo dar uma legitimação moral à insegurança uncool da direita só porque ela procura as Grandes Referências. Estou apenas dizendo que me identifico com ela, e admito que ela conduz a doenças bem próprias. O direitista pode defecar regras sem misericórdia e sem nem sequer interpretar uma situação concreta. Já o esquerdista é tão cool que é capaz de dizer, como vi recentemente, que, se foi machista no passado, é porque no passado o mundo era machista; agora que o mundo mudou, ele se esforça para atualizar suas atitudes, assim como atualiza o guarda-roupa.
É claro que o romance da direita não tem um final feliz. Nós gostaríamos de ter heróis mas precisamos fazer uma força danada para acreditar neles. Se o Brasil fosse uma potência econômica como os EUA, seria mais fácil para nós passar por cima da escravidão; mas nem sequer abominamos a escravidão por seu horror moral intrínseco, e sim porque ela não parece ter produzido um bom resultado desde o ponto de vista do desenvolvimento. Até nisso somos uncool, porque essa preferência pela riqueza material trai a força que fazemos para ser cool, a força que faríamos com ainda mais vontade se o Leviatã tirasse a pata dos nossos pescoços.
Um dia houve também um romance da esquerda. Não há mais, e todos sofremos com isso. No ano passado algum convidado do Répliques de Alain Finkielkraut notava que «o fascismo acabou, mas o antifascismo continuou», e hoje parte da direita faz o mesmo, com um discurso voltado para atacar a União Soviética. Porém, até a queda do muro de Berlim, até o fim da União Soviética, até o mensalão, talvez até «o maior esquema de corrupção da história do Ocidente» (atribuído ao PT por um importante intelectual de esquerda em conversa privada comigo), havia esse romance da esquerda, e a esquerda dizia que «outro mundo é possível», e, no quesito possibilidades, bem, ao menos era possível dizer que direitistas e esquerdistas eram não simplesmente duplos miméticos uns dos outros, mas pessoas com ideais diferentes.
No que creem, hoje os esquerdistas? No sistema. Se a direita é antissistema, a esquerda é o sistema. Se o sistema descondena seus candidatos, então melhor ainda. Não se fala mais na velha revolução, nem mesmo como ideal. Vale a Odebrecht. «Porque o Brasil não pode parar.» Os professores de esquerda esforçavam-se para ter salas de aula menos hierárquicas. Agora que a internet acabou com a boa posição hierárquica da Rede Globo, a esquerda defende a Rede Globo.
A esquerda está deprimida. Deprimida porque ainda não conversou consigo mesma sobre a queda do muro e sobre sua reconstrução pela Odebrecht.
Volto ao Finkielkraut. Hoje mesmo eu cozinhava e ouvia o Répliques da semana, que trata de Sally Rooney, a famosa escritora irlandesa que se diz marxista com ressalvas, porque o marxismo não tem, por exemplo, nada a dizer sobre a crise climática. E fico sabendo na emissão que a nota de otimismo de um de seus romances (não de Normal People, o único que li) é que uma personagem fica grávida e decide ter o filho mesmo assim. Minha nossa! Ter filhos enquanto Bouçonaro e Trâmpi existem e as florestas queimam! Que bela afirmação da vida! — Enquanto isso, direitistas têm pencas de filhos e se esforçam para dar aula para eles dentro da própria casa.
Hoje também entro no YouTube e vejo a Revista Fórum dedicando um vídeo a desancar o filme Oficina do Diabo, da Brasil Paralelo, exatamente como um veículo marginal de direita — o meu próprio O Indivíduo — teria desancado uma obra qualquer de esquerda em 1997, com a diferença de que essa esquerda não é composta de garotos de vinte anos. Dites-moi donc, c’est ça que vous faisez maintenant? A direita se enxerga como o kátechon bíblico, aquela misteriosa contenção do fim do mundo — fim do mundo esse que vem na forma de «ideologia de gênero», «diversidade», aborto livre, etc. E a esquerda, que não tem mais seu Romance, que não tem mais ideais, faz a mesma coisa, enxergando-se como o kátechon que, com a ofuscante careca de um juiz, conterá com a força do sistema os nerds nazistas que nem sequer têm uniformes desenhados por Hugo Boss. O tom de superioridade forçada, aquela tentativa de transmitir uma sensação de vitória moral que é o sinal inequívoco dos acuados, nada disso é bom sinal.
Por ora, a direita vencerá. Porque tem modelos positivos, por mais ingênuos que sejam. Mas vencerá por muito tempo? Não sei.