066 Gisele Bündchen lendo sessenta livros por ano
E uma nova seção: as perguntas fora da caixinha!
Aviso: quero convidar o leitor a enviar qualquer pergunta para mim. Nem todas as perguntas cabem na caixinha do Instagram. Vou selecionar algumas perguntas e respondê-las na newsletter. Você pode responder este email ou usar um formulário no Google.
Segunda-feira passada falei do marketing do medo (o texto que mais assinantes conquistou na história deste Substack; muchas gracias), e poucos dias depois me pediram, no Instagram, que falasse mais sobre uma analogia entre jovens grávidas que se entopem de cursos e aspirantes a intelectuais que não saem de casa (literalmente) porque estão tentando «ler sessenta livros por ano».
Veja, se você está falando de ler, ler mesmo, no sentido de ser capaz de fazer uma resenha de um livro num modelo, assim, acadêmico, aquela que fala de cada capítulo em separado, situa o livro no seu contexto, antecipa perguntas do leitor… Bem, eu só acredito que uma pessoa leia sessenta livros por ano assim se os livros forem curtos e ela não tiver muito mais o que fazer.
Acreditar que alguém lê sessenta livros por ano nesse nível é a mesma coisa que acreditar que a Gisele Bündchen só come pizza.
Ah, sim. O fetiche por ler muito e ler bem tem algo a ver com o livro Como ler livros (sim, traduzi a segunda metade) de Mortimer Adler e Charles van Doren. Não custa recordar que van Doren era uma desses jovens prodigiosos que respondiam a perguntas de cultura inútil na TV, e que admitiu ter recebido as perguntas de antemão.
Daí as jovens grávidas: Fulana é uma supermãe, sabe fazer tudo e ainda ensina; eu sou apenas uma moça latino-americana que ainda por cima tem medo do parto. Ela come pizza e ainda é a Gisele. Já as minhas coxas encostam uma na outra. E ela come pizza.
Ou então o jovem que quer estudar: eu sou um analfabeto funcional (não é sublime que uma pessoa leia um texto sobre analfabetismo funcional e assim diagnostique o próprio analfabetismo funcional?), e ele lê sessenta livros por ano.
Esse é exatamente o ponto em que você consegue capturar o que pode haver de malévolo no marketing. Mas é que não é algo específico do marketing, e sim do orgulho humano: a possibilidade de manipular seu medo e sua insegurança.
Se a Gisele come pizza e é a Gisele, quem sou eu? Nunca chegarei lá. Se a Fulana tem dezessete filhos e está sempre linda e sorridente, quem sou eu? Se o Fulano consegue ler sessenta livros por ano, e eu, que não saio das internets?
Você então compra um produto que é uma migalha deixada por um deus-influenciador, e ainda compra se sentindo chantageado: como assim, não vai conseguir ler nem um livro por ano? Você vai continuar sendo essa pouca coisa aí? Um fardo analfabeto? Ou ainda: vai deixar seu filho na mão da ONU? Vai continuar sendo feia?
Muito mais inteligentes, nesse ponto, são aquelas mulheres que questionaram padrões impossíveis e que notaram algumas obviedades. Para ser como a Gisele, é preciso ter nascido de um certo jeito: nem toda mulher pode chegar àquele corpo, e tudo bem, porque você pode reconhecer que a Gisele é bonita sem se deixar intimidar por isso.
Enquanto isso, o jovem continua lendo e achando que não entende aquilo que ele entende muito bem, e a jovem grávida sente que não estudar as minúcias da vida bebezal é a mesma coisa que abandonar o filho num orfanato.
Esperta, porque escaldada, é a mulher que sabe que se deixar intimidar pela Gisele Comedora de Pizza já lhe roubou muito tempo. Relaxada, ela teria efetivamente aproveitado anos da sua vida. Assim como a jovem grávida poderia confiar mais em si mesma e no filho, e como o leitor poderia se deixar guiar por seus interesses e por suas curiosidades, em vez de imaginar a cara de reprovação do Intelectual Sério.
E nem custa recordar que esta é a verdadeira Gisele:
Pergunta fora da caixinha
PERGUNTA: Tenho refletido muito sobre como a misericórdia de Deus nos ajuda a contemplar a inutilidade de remoer nossa culpa (ou seja: é perda de tempo gastar mais tempo com a culpa do que com o exame de consciência). Pergunto-me se muitos medos podem também ser total perda de tempo, como o medo da opinião alheia.
RESPOSTA: «Perda de tempo»: selecionei esta pergunta justamente porque tinha a ver com o que, no fundo, é o tema do texto acima. O medo leva à perda de tempo.
Porém, acho confundimos a «culpa» com a vergonha. Temos medo da reprovação da Gisele que só come pizza e lê sessenta livros por ano. Se você se sente culpado mesmo, há uma contrição. A contrição faz parte da conversão. Ou seja, você tenta mudar.
Não é a culpa que paralisa, mas a vergonha. O que a Gisele das Pizzas vai pensar? E quem sou eu neste mundo que só dá valor a quem é magro e vive de comer pizza? Veja que você mesmo falou no «medo da opinião alheia» — é exatamente isso. A sensação de não ter como enfrentar um olhar hostil e preferir se esconder.
«Vós julgais segundo a aparência; eu não julgo ninguém» (João 8, 15).
Sim, estou sendo redundante. Estou me repetindo. De propósito. Para que fique claro.
Música argentina da semana
Em «Hemofilia» (leia a letra), Delfina Campos canta tudo isso de que falamos aqui.