1 O perdão além do moralismo
Uma conversa com uma pessoa que prefere a discrição me trouxe uma luz a respeito do bloqueio que vivi no fim de 2023. Ela me perguntou se eu já tinha perdoado os envolvidos no episódio da PUC décadas atrás, e a verdade é que… pensando bem, não, não mesmo. Eu já tinha mapeado o meu próprio ressentimento, e entendido que eu quis dar um tapa na cara da sociedade e a sociedade bateu de volta. Mas perdoar, não, não tinha perdoado.
Essa pessoa me fez ver com os olhos da carne — porque é sempre mais fácil entender as coisas abstratamente, ver com os olhos da razão — que o perdão é algo que você faz para si mesmo. O perdão é algo que o nosso moralismo tacanho chamaria até de «egoísta», porque é uma decisão bastante racional: se você está vivendo um grande bloqueio, se está paralisado, medusado, se está no subsolo, você não faria o que é preciso para sair dessa situação?
(Veja que um belo exemplo de atitude «egoísta», nesse sentido, está no filho pródigo: quando ele está lá, na pior, comendo a comida de animais impuros, voltar para a casa do pai é uma decisão bastante racional.)
Ainda tenho a impressão de que há uma insistência igualmente moralizante em pedir perdão, em arrepender-se, sem que haja uma insistência correspondente em perdoar.
Agora, o que é perdoar? Não foi na filosofia que fui buscar a resposta, e sim no grego do Novo Testamento e na linguagem da superação de traumas.
2 A ideia de dívida
No Novo Testamento, o verbo grego afíemi, que costuma ser traduzido como «perdoar», tem o claro sentido do inglês to let go: deixar ir, liberar, soltar. É um sentido lindamente prosaico. Não é o único verbo que costuma ser traduzido como «perdoar», porque também temos o charizomai, que, segundo o dicionário Bailly, tem mesmo o sentido de «conceder uma graça, um perdão».
No texto bíblico do Pai Nosso, lemos «perdoa as nossas dívidas, assim como perdoamos os nossos devedores». Exatamente como na fórmula em latim, dimitte nobis debita nostra; exatamente como os tradicionalistas ainda rezam em português. Não lemos «perdoai as nossas ofensas».