Ler com clareza — A falta de saúde me impede de promover devidamente o curso Ler com clareza no Instagram. Se você está lendo este email num horário não muito distante do seu envio, então o curso está disponível.
Foi um curso pensado em grande parte para botar um pouco de ordem naquilo que se costuma dizer a respeito de textos alegóricos, simbólicos, míticos, e desmistificadores. Para começar, era preciso ter uma ideia do que cada um desses adjetivos significa.
Eles indicam modos de interpretar os textos. A ideia do curso talvez seja algo um pouco sutil demais, um pouco como pedir ao peixe que perceba que está na água, como pedir a um ciclista que pare e considere um pouco o que ele está fazendo quando pedala.
Porém, me parece muito melhor ser capaz de meditar sobre a própria leitura e ter mais clareza do que ler muito e chegar a interpretações que, mesmo parecendo muito profundas e morais, são totalmente equivocadas.
O desprezo e a raiva, versão ainda mais grave — Esta semana circulou o vídeo de três minutos em que uma deputada americana pergunta a três reitoras de grandes universidades (MIT, Harvard, University of Pennsylvannia) se pedir o genocídio dos judeus não pode ser categorizado como «assédio» pelo código de conduta daquelas instituições. A resposta é sempre «depende do contexto».
Neste mundo em que até a popstar francesa Angèle já fez um vídeo para explicar que o «não» de uma mulher não depende do contexto, peço que tentemos ir um pouco além da indignação fácil e do óbvio «pedir o genocídio dos judeus é sempre errado».
O vídeo de três minutos, por si, demonstra o velho teatro do desprezo e da raiva. As reitoras não escondem seu desdém pela deputada; sua presunção encenada pretende deixar claro que estão cercadas de caipiras, sendo assediadas por uma caipira. E a deputada não tem pudores quanto a encarnar o papel de anjo vingador, de acusadora coberta de razão. Todas as quatro diante das câmeras, encenando umas o desprezo, outra a raiva.
Meu temor é que aqui o antissemitismo, por si, passe a ser apenas um pretexto para o linchamento virtual. Veja essas esnobes antissemitas, que ainda por cima nos desprezam. Elas podiam ter sido pegar por qualquer coisa, nós queríamos pegá-las por qualquer coisa, mas foi na casca de banana do antissemitismo que elas escorregaram.
E por que eu digo isso? Porque não acredito em espectador inocente. Se vejo algo, minha reação importa. Não quero ser um linchador «do bem».
Marcelo Benchimol — Vejamos um caso um pouco mais caricato. O empresário Marcelo Benchimol — creio ser o proprietário do Centro Benchimol, onde muitos copacabanenses como eu já fizeram suas receitas de óculos —, linchado na rua por assaltantes, dá uma entrevista afetando serenidade, dizendo que no mundo tem gente demais, e citando Malthus. Junto com suas falas, aparecem destemidos comentaristas internéticos dizendo que ele apanhou foi pouco.
Com a mesma calma, posso observar: Benchimol, obviamente, está traumatizado. Também deve estar com vergonha. Por que sentimos vergonha quando somos assaltados ou agredidos? Há uma vergonha em saber-se vítima. Uma vergonha da impotência. Essa vergonha precisa ser coberta com algo. Se eu for atacar Benchimol agora por suas falas malthusianas, estarei me juntando espiritualmente a seus agressores.
O bom combate — Mas, Pedro, como vamos combater o crime e o antissemitismo dessa maneira?
Jean-Pierre Dupuy criticou René Girard por ter confundido, em Rematar Clausewitz, a defesa com o contra-ataque. Reagir é contra-atacar; reagir é ser pautado pelo adversário.
O primeiro papel da defesa seria não se deixar abalar pelo ataque. Claro que isso pode ser fingido. Posso ter sido agredido na rua e fingir que não doeu. Posso estar sendo pressionado no Congresso e manter um sorrisinho smug que diz que «estou acima disso tudo».
Posso fingir que sou inabalável, mas o bom combate está em ser, de fato, menos abalado. Creio que até as artes da guerra da vida reconhecem que o melhor combate é o que não acontece. Se acreditarmos que a serenidade é sempre uma espécie de cumplicidade com o mal, então com licença que eu vou correr para as montanhas.
Mulheres & cozinha — Numa nota mais leve, o leitor já deve ter reparado que, nas séries e nos filmes, as mulheres parecem ter saído da cozinha da casa. Se elas cozinham, são profissionais, são chefs repletas de autoridade. No casal, na família, quem cozinha é sempre o marido, e sempre lá está ele, todo feliz, descascando uma cenoura, mexendo uma panela, enquanto a mulher está atrasada para o trabalho, atendendo uma ligação importante.
Sim, eu sei que esse homem na cozinha ficcional é uma reparação histórica, uma reação a décadas e décadas de séries e de filmes em que subservientes rainhas do lar cozinhavam para seus maridos. Por que a mulher não poderia fazer o que o marido faz, dirigir uma empresa, ser presidente, ser presidente e lésbica, ser general, desativar bombas, trabalhar no mercado financeiro? Agora temos filmes e séries em que as mulheres fazem tudo isso.
Mas, agora que as mulheres ficcionais fazem tudo, será que vão redescobrir a cozinha doméstica, não como uma obrigação, e sim como um prazer? Será que elas vão encontrar na cozinha o mesmo prazer que os homens ficcionais encontram? Ou elas vão deixar o prazer para os homens, preferindo o… «poder»?
A música que ouvi mais vezes em 2023, segundo o Spotify — Caso o leitor tenha curiosidade, aí vai.
"Mas, agora que as mulheres ficcionais fazem tudo, será que vão redescobrir a cozinha doméstica, não como uma obrigação, e sim como um prazer? Será que elas vão encontrar na cozinha o mesmo prazer que os homens ficcionais encontram? Ou elas vão deixar o prazer para os homens, preferindo o… «poder»?". Essa é a pergunta do milhão Pedro.
“Meu temor é que aqui o antissemitismo, por si, passe a ser apenas um pretexto para o linchamento virtual.” Twitter in a nutshell.