Pedro Sette-Câmara

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138 A inteligência artificial e o fim de um mundo

138 A inteligência artificial e o fim de um mundo

Ainda não captei as vantagens das IAs *para mim*

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mai 21, 2025
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138 A inteligência artificial e o fim de um mundo
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Nota: este texto dialoga com o texto «A vida como romance de formação».

Pois estes dias li o artigo da New York Magazine que fala de como todos os estudantes em todas as universidades americanas, estão usando a inteligência artificial para fazer os deveres de casa.

Diante disso, minha tentação, meu reflexo, é partir para o discurso condenatório e apocalíptico: é o fim, acabou-se, etc.

Só leio no Reader Mode.

Em seguida, lembro de tudo o que li sobre mídias em Postman et al. e transformo a minha perplexidade num argumento um pouco mais refinado: é o fim, de fato, mas não «o» fim — é o fim de um mundo baseado em certas tecnologias, e o começo de outro. E, para evitar o sentimento apocalíptico que leva algumas pessoas a prever um grande «retorno das humanidades» (não creio nisso, mas não é o caso de explicar agora) ou «um novo romantismo» (quisiera yo), lembro do que Postman diz sobre a tecnologia como barganha faustiana: ela toma algo, mas dá algo também.

Meu problema com a inteligência artificial é que eu creio entender o que ela toma, mas ainda não entendi o que ela dá. Por isso, um certo desespero e uma certa melancolia me tentam, e muito; mas, de outro lado, o pavor de virar um velho ranheta que diz que «no meu tempo tudo era melhor» («meu filho, nós líamos livros de papel e namorávamos meninas de verdade») também me ronda. Assim, tento pensar, mas não sei se meus pensamentos são apenas as agitações de quem está tentando manter a cabeça fora d’água num mar tempestuoso.

A ideia de que uma tecnologia nova toma e dá pode ser entendida quando comparamos a cultura criada pela palavra escrita, especialmente impressa, com a cultura anterior a ela, baseada na oralidade.

Para falar disso, é inevitável retornar ao exemplo do Fedro, de Platão, onde encontramos a história do rei Thamus e do deus Toth. Toth quer dar a escrita aos homens, para que eles não precisem lembrar de tudo. Thamus diz que esse será o fim da memória: a escrita não é bem uma memória terceirizada, mas um instrumento para a reminiscência, que é outra coisa. Sócrates ainda comenta: ler um texto é bem distinto de que conversar com outra pessoa; o texto, afinal, sempre repete as mesmas palavras, na mesma ordem.

Se a educação se baseia na oralidade, na memória, ela funciona de um jeito. Nela, a pessoa educada é capaz de lembrar de poemas de cor. A ideia de sabedoria se baseia na recordação de fórmulas, de provérbios, comentados e aplicados em cada caso.

Agora, se a educação é baseada no texto, e ainda mais especificamente na palavra impressa em escala industrial, a pessoa educada pode até ter uma bela memória, mas ela só vai decorar textos se quiser, e provavelmente por gostar deles. (No tédio de muitas aulas da faculdade, eu me esforçava para recordar poemas inteiros de Yeats, e os recitava na cabeça enquanto o professor falava de alguma outra coisa. What could she have done, being what she is? / Was there another Troy for her to burn? — A lembrança de algumas salas de aula da faculdade de Letras da UFRJ é um gatilho que traz à mente os versos finais de «No Second Troy».) O resultado da educação baseada no texto será o sujeito capaz de consultar livros, o sujeito que se lembra de onde as informações estão. Em última instância, é só nesse tipo de cultura que uma obra de arte pode se tornar tremendamente erudita, referindo-se a textos obscuros — ela foi escrita para outros eruditos, ou demanda que o próprio leitor se torne erudito. Por outro lado, até hoje, qualquer adolescente pode abrir a Odisseia e começar a se divertir imediatamente.

Sim, a cultura oral tem vantagens e desvantagens. Nela, a filosofia é uma conversa, um diálogo, algo que acontece «ao vivo», por assim dizer. Os contatos entre mestres e discípulos são mais pessoais. Imagino que as pessoas tivessem menos problemas de coluna também, e que ninguém cogitaria gastar o preço de um MacBook numa cadeira Herman Miller. Por outro lado, talvez a transmissão de «conteúdos» sofresse um pouco mais com as falhas de memória. Mais ainda, esses conteúdos não podiam viajar «sozinhos».

Basicamente eu queria dizer que acho que se você é psicólogo, trabalha com educação, com as gerações mais novas, e nunca leu nem um livro — nem este, o melhor livro introdutório — sobre o impacto das tecnologias, e acha que Jonathan Haidt vai resolver o seu problema…

Sim, poder viajar é uma das vantagens da palavra escrita, sobretudo quando é também impressa em escala industrial. Já na Europa renascentista você podia importar livros, trazer livros na bagagem. Já no tempo de Platão, os filósofos iam até o Egito aprender coisas novas, e o que traziam estava em sua memória.

Na cultura oral, o filósofo que quisesse alunos teria de contar com a sua própria presença, com sua aparência, etc. Na cultura impressa, você pode ser profundamente influenciado por uma pessoa com quem você nunca vai se encontrar. O filósofo ganha uma vantagem ao ser também bom escritor; já o próprio Sócrates não deixou nada escrito — e, se Platão tivesse seguido seu mestre, quem seria Sócrates para nós?

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