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051 Acídia e libertação da acídia (Parte 2)
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051 Acídia e libertação da acídia (Parte 2)

Continuando o texto de ontem, mas agora com áudio em vez de vídeo

O texto de ontem pode ser lido neste link. No áudio, exploro justamente a questão do roteiro apresentada no título 3. Não esqueça que, tornando-se um assinante pagante desta newsletter, você recebe textos exclusivos. É só clicar em SUBSCRIBE NOW.

3 Se a sua vida fosse um filme

Se você quiser ver a vida como um filme americano da década de 1990, isto que estou propondo aqui seria o fim do Primeiro Ato. Você percebe que o seu mundo normal é uma mentira, mas não uma mentira que «os outros» inventaram para você. É uma mentira na qual você acredita voluntariamente. Não seria um filme lá muito original, é verdade. Mas e daí? Também sem a menor originalidade, digo que abandonar o desejo de ser original é a mesma coisa que deixar de querer impor-se ao mundo, e uma condição para começar a enxergá-lo.

No começo do Segundo Ato, você entraria num novo mundo. Porém, não posso garantir como ele seria. Só posso dizer que, depois desse ponto de virada, as coisas ficariam bem mais complexas. Não se trata de uma idiotice no estilo Red Pill de Matrix, que divide o mundo em dois grupos de pessoas. Seria «apenas» — e dá-lhe aspas — um ganho de complexidade mesmo. Ninguém te daria parabéns, ninguém te daria um tapinha nas costas. Você reformularia a sua visão de mundo e passaria a viver em novas bases, mais adultas. Seria um pouco mais como se Emma Bovary, por quem tenho tanta simpatia, acordasse do sonho, e, sem abandonar o anseio por uma vida mais interessante, encontrasse-a na vida que já tem, enriquecida e dramatizada pela reflexão. Se Emma Bovary fosse mais adulta, seria a Dorothea Brooke de Middlemarch.

Prossigamos.

4 O ciclo de reforço da acídia

Em geral, o direitista se interessa principalmente pela negatividade — o fim da beleza, o fim da civilização, o fim da universidade, o fim da arte, o fim dos valores, o que quer que seja, é o fim, ao menos no título, no clickbait, no storytelling, é sempre o fim; e, quando não é o fim, é o que há de errado com o mundo, é o homem-massa, o señorito satisfecho, o homem medíocre, a crise da cultura, a traição dos clérigos, os estragos do feminismo…

A lista, tão longa quanto incompleta, sempre fornece os motivos pelos quais o direitista fica preso na acídia. Se há algo de bom, é inacessível, porque não existe mais. Daí ele passa a estudar as causas do desaparecimento e a colecionar barbaridades, pelas quais tem uma atração mórbida, como se fosse um sommelier do lixo.

A ideia de sempre vender o fim de tudo vem da premissa de marketing do «inimigo comum». É a mesma ideia que está por trás de frases como «mentiram para você…», «o que não te contaram», «o que não querem que você saiba»… É uma premissa a que você é sensível porque tudo que é desagradável parece mais verdadeiro. No fim das contas, você acaba vivendo dentro da famosa canção-chiclete de Joni Mitchell que diz «asfaltaram o paraíso e puseram um estacionamento».

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(E como é bizarro que, com uma letra tão sinistra, ela cante com tanta alegria. Até me lembro dos «desaparecidos» do Facebook.)

Assim é que a nova direita brasileira vai se tornando um curral eleitoral e um segmento de marketing, ambos alimentados com inimigos imaginários. Não há mais ideais possíveis. Não há nada que possa ser realmente desejado, porque está tudo estragado de antemão. Os filhos serão estragados pela escola, o imaginário será pervertido pelas grandes corporações, e poucos são os que têm a coragem de realmente adotar o estilo de vida amish. Só o que resta é votar em candidatos que nominalmente defendam pautas «de direita» e comprar produtos que reforcem esse estado confortável, amargo, e sonhador de acídia.

5 Saída filosófica

Não me parece possível sair da acídia sem uma espécie de «conversão». Não estou aqui falando necessariamente de conversão cristã, mas certamente estou falando de uma espécie de conversão do coração, porque ela envolve primeiro uma mudança das próprias disposições.

A principal disposição a mudar é a da desconfiança que acabou ficando arraigada na alma. Você achava que não obteria algo, e passou a desconfiar dos outros. Você passou os dias lendo livros (ok, estou sendo otimista) e vendo documentários (talvez até pagando por eles) que te dão a sensação de que vivemos no absurdo e de que aquilo que é bom já acabou.

Se a própria ideia de «vida intelectual» fizer algum sentido, se você mesmo quiser aceitar os questionamentos implícitos nela, você começaria examinando as próprias crenças. Em vez de revoltar-se porque falta ao mundo vocação filosófica (falta mesmo, e daí?), pergunte-se por que você pensa do jeito que pensa, e qual a origem de suas ideias.

(A parte que mais me recordo do documentário O jardim das aflições é aquela em que Olavo de Carvalho fala da importância de conhecer a origem das próprias ideias.)

Por exemplo: se o direitista fosse à universidade, poderia aprender, como aprendi nela, que a sua ideia de infância e de família tem uns 300 anos de idade. Que o tipo de casamento que ele procura, um casamento de companheirismo, também é algo que surgiu lá pelo século XVII. Que a ideia de que a família nuclear é a base de uma sociedade vista como um todo orgânico é bem moderna. Que a ideia de casar-se por amor nem sempre foi muito bem vista na famosa civilização cristã. Que o namoro só apareceu no século XX — antes, se um homem parecesse se dar particularmente bem com alguma mulher, então a expectativa era que você a pedisse em casamento no máximo em poucas semanas.

Mais ainda, talvez o direitista descobrisse que, mesmo tendo razão diante de um mundo tecnocrático, de uma sociedade programada e administrada pelo despotismo esclarecido dos burocratas, até pelo menos a década de 1980 esse tipo questionamento vinha sobretudo da esquerda. A direita era a defesa da ordem racional da sociedade com vistas ao progresso.

E ele poderia descobrir, se insiste tanto na famosa «educação liberal», que essa liberdade, puramente humana, inclui uma certa fé, aqui no sentido de uma aposta. Talvez no meio de tantos livros e de tantos estudos você encontre uma pergunta instigante. Talvez você encontre num romance um personagem parecido com você, e assim consiga expressar melhor sua própria vida, seus próprios problemas. Estar unido a uma tradição cultural é tão somente (e não é pouca coisa) ver o que outros viram, e manter a conversa viva.

Aliás, a ideia de «educação liberal» é uma ideia totalmente iluminista. E quando você vê um americano falar «o Ocidente», the West, e excluir o Brasil, é porque a noção de «West» dele significa «sociedade com bases iluministas».

A França acredita tanto na associação entre educação letrada e democracia política que, se você perguntar ainda hoje a um francês o que é a França moderna, o que é a República com R maiúsculo, ele dirá que é a escola obrigatória.

Se a ideia de «cultura» do direitista for essencialmente fazer mesas-redondas sobre a decadência, sobre como os antigos eram melhores do que nós, não surpreende que todo tesão de viver desapareça, que ele seja viciado em pornografia, que passe os dias a esmo na internet, perdido na curiositas — e o que há de particularmente infernal nisso tudo é que uma vida muito mais rica, com espanto e admiração, com pessoas reais e presentes, está disponível o tempo inteiro.

6 Minhas investigações pessoais

É muito importante para mim enfatizar que dei exemplos de ideias e de discussões que me interessam pessoalmente, que afetam a minha vida diária. Não me interesso pela cultura como verniz, nem como aquilo que talvez venha depois que o dinheiro está garantido.

Vale dizer que, atualmente, me dedico a alguns assuntos — nem todos aparecem no Instagram. Estes dois, porém, aparecem:

— Meu curso «Desejo & Orgulho» (as inscrições serão reabertas, depois da minha doença as coisas estão entrando nos eixos) é uma tentativa de mapear, por meio de três romances importantes (O vermelho e o negro, de Stendhal; Diário de um homem supérfluo, de Turguêniev; Memórias do subsolo, de Dostoiévski) como nasce esse sentimento tipicamente moderno de ressentimento impotente que leva à crença em fantasias conspiratórias a respeito do mundo. Um plebeu de 1600 não teria inveja do duque, por acreditar numa ordem transcendente por trás da ordem social; hoje, você se ressente dos ricos, porque acredita na igualdade (mesmo que diga que não acredita — se não acreditasse, não se ressentiria).

— Existe uma confusão entre o sagrado e o santo (não tenho a menor intenção de formatar um curso a respeito disso tão cedo), e o santo vai destruindo lentamente o sagrado. Em grego antigo, santo e sagrado eram até distinguidos por duas palavras diferentes, respectivamente hagíos e hiéros. A primeira indicava uma experiência interior. A segunda, uma função exterior, incluindo a função do sacerdócio. Hoje, modernamente, esperamos que o sagrado seja uma expressão do santo, e achamos que isso seria a «ordem» do mundo. Porém, essa ordem nunca existiu, e provavelmente nunca existirá. Se existir, seria algo presente na Segunda Vinda de Cristo, à qual eu nem mesmo sei se corresponderá a um tempo histórico.

(Essa do sagrado e do santo é uma investigação pessoal de Wolfgang Palaver. Pude vê-lo falar disso no congresso de 2014 do Colloquium on Violence and Religion. O assunto ficou na minha cabeça.)

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