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052 A «educação liberal» americana
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052 A «educação liberal» americana

E os objetivos de um projeto educacional em 2022

No áudio, falo de como a vida intelectual no Brasil tem mais tradição fora da universidade do que dentro dela. Porém, disso nem concluo que se possa evitar a universidade, nem evito a questão: será que, com os cursos online, teremos uma nova intelectualidade pública, talvez com formação universitária, mas que não reproduz os trejeitos universitários? Eu acharia isso excelente.

1 Fugir do imaginário

Um problema de textos como «A ideia de universidade e as ideias das classes médias», de Otto Maria Carpeaux, é tratar de realidades que 100% dos brasileiros vivos nunca viram, e que talvez nem tenham realmente existido: por exemplo, a ideia de universidade como alma da nação, proposta por Carpeaux, poderia ser questionada em centenas de páginas.

Digo isso porque me parece mais proveitoso partir da observação direta e daquilo que é de fácil consenso do que simplesmente postular um ideal e depois ficar lamentando-se porque o ideal não pode ser atingido. Como venho insistindo, essa é a receita da acídia.

Por outro lado, um projeto viável, exequível, imediato, não deixa de ter seu drama: nem sempre o resultado é o esperado, e o fato de ele ser exequível significa apenas que os obstáculos podem ser superados, não que não existam. Porém, é muito melhor concentrar-se em obstáculos superáveis do que chorar pela distância infinita entre a vil realidade e o ideal excelso.

2 Um projeto real, em prática: a «educação liberal» americana

Por isso que, continuando os textos anteriores, e dentro de uma meditação maior a respeito do que seria uma «educação liberal» possível no Brasil de 2022, apresento brevemente o projeto da educação liberal americana, que existe ainda hoje nos liberal arts colleges. Qualquer jovem que tenha dinheiro e um ótimo currículo (não apenas boas notas na escola) pode ter acesso aos melhores colleges americanos.

O projeto desses colleges é eminentemente iluminista, com vistas à participação democrática. A ideia, lembrando o texto de Leo Strauss a respeito do tema, é pôr o aluno «em comunicação com as maiores mentes», mas também é prepará-lo para o debate democrático — debate esse que é retórico, é preciso dizer.

Por isso é que o aluno americano que vai para um liberal arts college não sai dele com um diploma profissionalizante — e a sociedade americana, por sua vez, exige menos diplomas. Não creio que um americano sequer conceba, por exemplo, que alguém possa discutir seriamente a obrigatoriedade legal de um diploma de jornalismo para que alguém possa ser empregado como jornalista. Isso pareceria algo contrário à liberdade de expressão.

Os liberal arts colleges podem até ter algum viés profissionalizante, mas metade dos seus 128 créditos obrigatórios são justamente de liberal arts: não as sete artes liberais da Idade Média, mas aquilo que vagamente chamaríamos de «humanas» no Brasil, acrescidos de pelo menos oito créditos de natural sciences.

A ênfase dessa formação está na apresentação de trabalhos escritos, e, mais ainda, na pesquisa e na expressão individuais. Mais importante do que ser capaz de recensear todas as posições consagradas em torno de uma questão, o aluno é convidado a escrever bem, a ser capaz de defender-se — é importante insistir — retoricamente.

Um rigor acadêmico maior, junto com a aridez do estilo acadêmico, ficam para o mestrado — e, em geral, você só faz mestrado se quiser entrar para a própria profissão acadêmica. (Aliás, ao contrário do Brasil, como a faculdade não é gratuita, ninguém faz um mestrado porque está perdido na vida, sem saber o que fazer.) Por isso é que os alunos da graduação, nos EUA, são chamados de undergraduates, e só a partir do mestrado é que você passa a ser chamado de graduate student.

Quando você é um undergraduate, você estuda as grandes obras, as grandes questões, e se torna capaz de escrever textos coerentes a respeito delas; quando você é um graduate student, você entra nas minúcias, começa a especializar-se, e começa a dar aqueles cursos básicos para os undergraduates. As grandes exceções aqui são medicina e direito, que, nos EUA, são cursos de pós-graduação; ninguém, aos 18 anos, começa essas faculdades — no máximo, você faz cursos undergraduate que preparam para essas carreiras. O famoso bilionário Peter Thiel, por exemplo, fez seu college em filosofia, e depois entrou para a Law School, a faculdade de direito.

Assim, a ideia de educação liberal está principalmente nesse undergraduate study que é feito no liberal arts college. É a ideia de que, mesmo que você venha a se tornar um profissional de qualquer área, você teve algum contato mais próximo com certas obras importantes, e ouviu falar de outras. Mesmo que você seja padeiro ou dentista, você terá alguma ideia do que é a liberdade para John Locke ou da origem do romance moderno, e será capaz de defender suas opiniões de um modo minimamente coeso.

Um efeito visível dessa ênfase na escrita é que qualquer fórum gringo a respeito de qualquer tema é mil vezes mais articulado do que qualquer fórum brasileiro; o jornalismo tem um texto infinitamente superior; e até meras resenhas de produtos são mais ricas. Talvez até o entretenimento americano seja o mais hábil do mundo não só porque é feito por pessoas com essa formação, mas porque é feito para pessoas com essa formação.

3 Impasses da educação

Agora, os impasses desse projeto são temas de livros inteiros. O primeiro é óbvio: de que adianta, para a vida política, tanto estudo e prática retórica quando todos os debates foram reduzidos — pelo menos desde o advento da televisão — a puro entretenimento?

O segundo, também muito discutido, é que a democracia em sentido forte talvez nem mesmo tenha existido nem possa existir. O aspecto político do projeto da educação liberal simplesmente não renderia frutos.

Hoje, a questão da democracia ainda se agrava. Não por causa de Trump ou Bolsonaro; antes deles, até a melhor esquerda já denunciava a tecnocracia e a redução da vida política à discussão das políticas públicas mais eficientes. Os governos ocidentais estariam destinados a tornar-se como a URSS em seus últimos dias: burocratas com gráficos e planos que jamais questionariam a capacidade do governo de resolver «problemas sociais».

Assim, talvez aqui tenhamos chegado ao que seria um objetivo desejável de um projeto de educação liberal: libertar o aluno do entretenimento e da tecnocracia.

Mas o assunto é longo, e ainda será preciso voltar a ele.