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054 O amor depois do amor
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054 O amor depois do amor

Muitos pensam em «Drive My Car»; eu penso no filme anterior de Ryûsuke Hamaguchi

No áudio, menciono a peça de teatro que escrevi, cujo texto está disponível em PDF neste link.

1 Dois sentidos

Enquanto as atenções se voltavam para o excelente Drive My Car, eu me detinha em Asako I & II, filme anterior de Ryûsuke Hamaguchi (disponível no Mubi). Devo confessar que eu me detinha não exatamente no filme, mas num tema do filme: o amor depois do amor.

Ao escrever «o amor depois do amor», recorro a um velho truque dos estudantes de Letras, que é usar a mesma palavra em dois sentidos diferentes. Por outro lado, espero não cair na armadilha dos doutrinários, que é simplesmente dizer que um amor é falso, e o outro, verdadeiro. Não: são duas experiências verdadeiras, ainda que seja verdade que a segunda é mais fácil de explicar — e é exatamente isso que torna a primeira tão interessante.

(Devo esclarecer que o título do texto não é uma referência à famosa canção de Fito Páez da qual tanto gostei na minha adolescência. E se você quiser saber se ainda gosto dessa pérola da breguice, I neither confirm nor deny these allegations.)

2 O primeiro amor

O exemplo clássico do primeiro amor está na história de Tristão e Isolda. A história quer que você acredite que Tristão, o cavaleiro mais forte, o matador de dragões, roubou a esposa prometida do tio, o rei Marc, por causa de uma poção do amor. A história quer que você acredite que Isolda, princesa da Irlanda, se apaixonou pelo maior cavaleiro, pelo matador de dragões, pelo homem que derrotou o irmão dela num duelo, por causa de uma poção de amor.

Era o ano de 1996 quando li isso pela primeira vez. Eu tinha 18 anos, fazia frio em Nova York, o professor Charles Affron tinha pedido que lêssemos a tradução inglesa da versão de Béroul. Com fumacinha saindo do nariz por causa do frio, eu caminhava por Washington Square pensando que, pela primeira vez na vida, eu estava desconfiando de uma história. Eu achava que aquilo tudo estava muito mal contado.

Décadas depois, fui descobrir que Roger Scruton, ao comentar a ópera (drama musical, vá lá) Tristão e Isolda, de Wagner, pensava a mesma coisa. Scruton escreve belas páginas para explicar que o amor de Tristão e Isolda nasceu de um encontro de olhares dos dois.

Devo dizer: se você já teve a experiência de, acidentalmente, cruzar o olhar com alguém, e os dois manterem o olhar assim, enganchado… Se não teve, posso usar o argumento popularesco número 1: estudos apontam que pessoas que, mesmo deliberadamente, olham nos olhos uma da outra desenvolvem conexões muito intensas. Num estudo desses, dois participantes acabaram se casando.

Esse enganchamento de olhares — e aí a expressão é minha — é que teria explicado a conexão entre Tristão e Isolda. Richard Wagner e Roger Scruton não caíram no conto da poção.

O filme Asako I & II começa com algumas crianças brincando de soltar fogos de artifício em pleno dia, e, segundos depois, temos o enganchamento de olhares entre Asako e Baku.

Sim, claro, os fogos de artifício devem simbolizar muita coisa, como a efemeridade do que está por vir. E, como no caso de Tristão e Isolda, com ou sem poção, como no caso dos flechados por Cupido, como no caso do verso de Vinícius de Moraes que diz que «todo grande amor só é bem grande se for triste», não há futuro para os dois amantes.

Porém, há uma diferença crucial, que aproxima Asako I & II de filmes como Two Lovers, de James Gray, e A flor do meu segredo, de Pedro Almodóvar: o que temos não é a épica história de dois amantes contra o mundo, mas a história de uma pessoa que, abandonada, se depara com o desafio de continuar vivendo depois de ter experimentado algo… místico.

3 Uma experiência mal explicada

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