112 Seminário de julho: Tecnologia
No texto, um exemplo de como a tecnologia atropela a democracia
AVISO: O seminário começa dia 10/07, mas o assinante pagante da newsletter encontra um convite para discutir hoje, 03/07, às 20h, temas relacionados a ele, a este texto, e aos seminários anteriores ao fim desta mensagem.
Após dois seminários muito gratificantes, com excelentes alunos, passamos em julho a um tema de interesse mais geral: as mudanças tecnológicas. A base do curso será a obra de Neil Postman, com a qual tenho mais familiaridade. Além disso, Postman se destaca por ser uma leitura agradável; seu texto representa todas as qualidades que ele louvava na «cultura do prelo» (print culture), a qual está se desfazendo bem diante dos nossos olhos.
Até por isso, uma parte do seminário — e sinto que ele tem o potencial para estender-se até agosto — será dedicada a tomarmos consciência do que é essa cultura do prelo. Mais ou menos como se tentássemos responder: mas, afinal, o que é que os conservadores culturais gostariam de conservar?
De lambuja, ao fazer o seminário, o aluno perceberá o quanto é involuntariamente cômico um «conservadorismo» que defende startups disruptivas (UBER, Netflix, etc.) e não reflete sobre a tecnologia. O aluno também será convidado a refletir sobre como resistir, de maneira realista, ao que Postman chama de «tecnopólio». Não queremos nos tornar Amish, mas também não queremos ser ingênuos escravos do doomscrolling. Não é tão simples, mas também não é muito mais difícil do que fazer uma dieta — uma dieta da informação, com um certo entendimento de como funcionam os alimentos e o aparelho digestivo.
Abaixo das informações, um texto, gratuito, que dá uma ideia do tipo de estudo e discussão que faremos. No texto, ponho um link para uma tradução que fiz de Postman; porém, vale a pena ler também a tradução feita pela Renata Broock.
SEMINÁRIO DE TECNOLOGIA: INFORMAÇÕES E INSCRIÇÕES
Quatro reuniões por Google Meet: 10, 17, 24, e 31/07, das 20h às 22h.
Pagamento via PIX: R$ 400 para ps@pedrosette.com. Se for assinante pagante da newsletter, R$ 365. Envie um email para ps@pedrosette.com ou responda esta mensagem.
Para fazer o pagamento por cartão (com o valor de R$ 420, nada a ver com o STF), use este link. Mesmo fazendo o pagamento por cartão, envie um email para ps@pedrosette.com. Se for assinante pagante da newsletter, há um cupom de desconto exclusivo ao fim da mensagem.
Envie seu número de celular para ser incluído no grupo do WhatsApp.
A democracia atropelada pela tecnologia
A mudança tecnológica tem efeitos perfeitamente escancarados, que ninguém disputa: a pílula anticoncepcional efetivamente separou o sexo da reprodução e destronou a antiga moral sexual, que hoje seria vista no Ocidente como algo quase digno do Taliban. A fertilização in vitro separou a a reprodução do sexo e criou a barriga de aluguel; uns diriam até que ela levou à criação, na França, do «direito ao filho». A maioria de nós se lembra de um mundo em que as pessoas não estavam todas com a cara metida no celular, e nunca vi uma pessoa que elogiasse o celular sem reservas.
Por outro lado, a mudança tecnológica tem efeitos que só são percebidos por quem se debruça sobre o assunto mesmo da tecnologia, e sabe que a cultura anterior à onipresença de iEngenhocas não era o estado natural da humanidade, mas algo igualmente artificial, mas, ao que tudo indica, muito superior ao que temos hoje — e não estou falando de problemas como aqueles descritos por Jonathan Haidt. Neste texto vou discutir um exemplo desses problemas, que é a maneira como a tecnologia está atropelando a ideia mesma de democracia, exatamente como a pílula e a fertilização atropelaram a moral, o amor, o casamento, a reprodução.
Na verdade, na verdade, a nossa situação imediatamente anterior já era definida pela onipresença da televisão; quero mesmo é falar de algo um pouco mais antigo, que ainda sobrevivia, e sobrevive cada vez menos na prática, mas ainda domina o nosso imaginário: a cultura derivada da palavra impressa — e notem que eu disse «impressa», e não simplesmente «escrita», nem «reproduzida na tela». Impressa em papel.
A cultura do prelo: atenção e concentração
Quando o prelo foi inventado em meados do século XV, ninguém imaginava o que aconteceria. Um copista levava quatro meses para copiar uma Bíblia; Gutenberg reproduzia mecanicamente uma por dia. Ele, católico devoto, não cogitava que, a partir do momento em que a Bíblia deixasse de ser um objeto especializado, lido por poucos, e passasse a ser lido por muitos, esses mesmos muitos se perguntariam por que não podem eles mesmos interpretar a Bíblia. Por que uma pessoa letrada, leitora da Bíblia, deveria submeter-se à autoridade da Igreja Católica?
Embora a Reforma Protestante decerto seja um tremendo efeito inesperado de uma tecnologia, tremendo o suficiente para ilustrar meu argumento, ela ainda não é o exemplo fundamental para o que pretendo dizer. Tenho de convidar o leitor a imaginar uma Europa que passa rapidamente, em algumas décadas, de uma cultura oral para uma cultura impressa.
A leitura é solitária. A leitura exige concentração. A leitura pede uma exposição sequencial, ou uma narração. A leitura deixa o leitor ensimesmado. A leitura desconecta o leitor da realidade imediata — tanto que o primeiro grande romance moderno, Dom Quixote de la Mancha (1605), trata dos males da leitura.
Numa cultura baseada na palavra impressa, portanto, são estas as qualidades desejáveis, e não por acaso são as mesmas que eram esperadas de você na escola: a capacidade de ficar em silêncio; a capacidade de concentrar-se; a capacidade de pensar muito, em silêncio; a capacidade de expressar-se por escrito, de maneira coerente, sequencial, em frases complexas. Na cultura baseada no prelo, «o estilo é o homem».
(As apresentações em PowerPoint e os TedTalks já são tremendamente influenciados pela cultura tecnopolística; nenhuma pessoa séria criada na palavra impressa aceitaria que lhe explicassem algo «como se ela tivesse dois anos».)
Agora, mencionei há pouco a Reforma Protestante para poder fazer a ponte com outro grande filho do prelo: o Iluminismo, que está associado ao tema deste texto, a democracia. Se você parar na rua uma pessoa vagamente culta e lhe perguntar o que é democracia, provavelmente ela dará uma definição iluminista: um sistema político em que pessoas livres debatem de igual para igual, em que, apesar de todo o toma-lá-dá-cá de cargos e de fatias do orçamento, ainda deveria haver espaço para a persuasão, para a defesa de princípios.
Para reforçar, eu ainda poderia dizer que uma adaptação importante do ideal democrático ateniense para o ideal democrático moderno é justamente que, no ideal moderno, prevalece a escrita e não a fala. Você pode, agora mesmo, começar a ler os livros que criaram a Europa moderna e os Estados Unidos; não simplesmente livros «a respeito» do que houve, mas livros e panfletos que moveram as pessoas a alterar seus sistemas políticos, a fazer revoluções. Isso no século XVIII. No século XIX, um Victor Hugo combateu a pena de morte valendo-se da literatura. Na Rússia, as Memórias de um caçador de Turguêniev e os panfletos de Alexander Herzen contribuíram para a emancipação dos servos em 1861. Os grandes movimentos políticos que ainda hoje moldam nosso imaginário foram movimentos baseados no texto impresso.
E insisto: uma cultura de leitores é uma cultura de pessoas abstraídas, mais propensas à racionalidade, pessoas que não vão se deixar seduzir tão facilmente por um orador bonito.
A cultura da televisão: o entretenimento
Nos anos 1980, Neil Postman, professor da New York University (como Haidt, aliás…), fez no livro Amusing Ourselves to Death uma comparação entre os debates presidenciais entre Abraham Lincoln e Stephen Douglas em 1859 (o link vai dar na minha tradução de um capítulo de Postman sobre esses debates), ou seja, debates da cultura em que predominava a palavra impressa, e os debates presidenciais da TV. Nos debates de 1859, o primeiro candidato falava por três horas, o outro tinha uma réplica de três horas, e o primeiro, uma tréplica de uma hora. Nos debates presidenciais televisivos, cada candidato tem dois minutos para responder uma pergunta aleatória — de preferência, «explicando ao telespectador como se este tivesse dois anos» —, o outro tem um minuto para a réplica…
Mas o amusing do título do livro já sugere o argumento maior de Postman. Se a cultura do prelo estimula a razão, a calma, a argumentação coerente, se essa cultura nos deixou boa parte daquilo que ainda hoje chamamos de «cultura», a televisão traria um viés de entretenimento, e seu maior mal, segundo Postman, certamente não estaria nos programas que se apresentam diretamente como entretenimento. Seu mal está no debate presidencial reduzido a entretenimento. Seu mal está no jornalismo reduzido a entretenimento — isto é, todo jornalismo televisivo, com suas vinhetas musicais, com sua colagem surrealista de conteúdos aleatórios apresentados no mesmo tom de voz, como se fosse possível que alguém pudesse ter uma resposta emocional a todos eles, com o conflito Israel-Hamas seguido da desvalorização do real e da última tirada do presidente da Argentina.
E se Postman considerava que essa redução ao entretenimento punha em risco a democracia americana, o que ele queria dizer não era necessariamente que haveria algum acontecimento particularmente tremendo, mas algo que já está indicado nos exemplos que dei: no século XIX, um debate exigia atenção, concentração; no século XX, ele se torna um espetáculo. O jornalismo televisivo, também, pretende ser algo muito distinto do entretenimento, mas essa distinção só vale dentro da própria cultura televisiva.
A questão, em suma, é que uma mudança tecnológica pode simplesmente apagar do senso comum continentes mentais inteiros. Se não fazemos o exercício mental de nos enxergarmos com olhos alheios, de épocas diferentes, de culturas distintas, simplesmente não enxergaremos as mudanças — porém, essa própria capacidade de abstrair-se, de pôr a própria cultura entre parênteses, é justamente um dos traços da cultura baseada… na palavra impressa.
A cultura da internet: as bolhas
Agora, porém, cabe notar que a democracia está sendo solapada pelas mudanças tecnológicas ainda outra vez.
Se pensamos na democracia como um ideal letrado do século XVIII baseado no debate entre pessoas cultas que têm posições contrárias, então essa democracia simplesmente não existe mais. Ela até pode voltar a existir, a qualquer momento — mas não é esse o viés das mídias sociais que utilizamos. «O meio é a mensagem», disse Marshall McLuhan; a maneira como uma informação nos chega altera a nossa percepção; um debate pode ter falas de três horas ou pode ter respostas de dois minutos…
Pois bem. Já notei o fato aqui na newsletter uma vez, e vou notá-lo outra vez, agora tendo em mente a comoção suscitada PL 1904/24, relacionado à criminalização do aborto: não vi ninguém que fosse a favor escrever um texto dirigido a quem fosse contra, tratando o seu interlocutor como uma pessoa decente, razoável, que merece ser convencida; também não vi quem fosse contra sequer dirigir-se ao famoso «outro lado».
Não falamos mais com o outro lado. Desde a eleição de Bolsonaro, a esquerda publicou alguns livros sobre a direita, todos dirigidos à própria esquerda. Não se fala com a direita, mas apenas da direita, como se ela nem sequer estivesse presente. A direita, também, não se dirige à esquerda, mas apenas faz a mesma coisa. Direita e esquerda não são mais rivais; são bolhas que têm uma na outra seu bode expiatório.
No caso do PL 1904/24, a direita pró-vida produziu vários materiais que nunca seriam persuasivos, simplesmente porque seu papel não era ser persuasivos, mas sim reafirmar, reaquecer, recrudescer a posição dos que já estavam desse lado. Eu mesmo, que também na newsletter já propus uma mudança retórica no discurso da direita (sendo eu mesmo parte da direita contra a legalização do aborto), imaginando que poderíamos reconhecer que a mulher ficou com o ônus da revolução sexual, que ela muitas vezes não tem apoio, que se pede dela algo que pode ser heroico, cheguei a ler a sugestão de que eu tinha passado a ser a favor da legalização do aborto. Estamos mesmo longe da cultura da palavra impressa; a nuance é proibida; a variação retórica é mal vista; não basta ter a mesma posição, é preciso ter também a mesma retórica, ainda que ela pareça ineficaz (afinal, o famoso outro lado também recrudesce…) e… antidemocrática, por nem sequer tentar convencer aquele que não está convencido.
Aqui temos até uma questão interessante, que pode ser desenvolvida no Seminário de julho: em junho discutimos a bruxaria e o marketing digital, o que foi uma discussão de como se entra numa mentalidade de guerra e de violência. O colapso da mentalidade democrática parece indicar que descambamos para a guerra cultural, com o detalhe de que os autores da grande mídia também fazem parte dela, porque nem eles escrevem para o outro lado com respeito.
E o que ficou da famosa democracia?
Quis mostrar que uma coisa é a democracia no imaginário, que permanece iluminista e antiquado, ligado à cultura semimoribunda do prelo; outra coisa é a nossa famosa vida real.
Nessa famosa vida real, quando se fala em «defender a democracia», ninguém está falando em preservar o livre debate entre pessoas letradas que têm posições realmente opostas. Não vejo, na preocupação com a educação, a preocupação em formar pessoas para o debate — o debate, hoje, é uma especialidade cultivada em clubes universitários de debates.
(Aliás, creio, com Neil Postman, que as pessoas que ainda forem capazes de debater, que preservarem ao menos entre si as qualidades da cultura do prelo, serão a futura elite. É aquela história: na escola dos filhos dos donos das empresas de tecnologia, os tablets são proibidos…)
Com o debate, outros elementos criados pela cultura do prelo vão desaparecendo: a diferença entre crianças e adultos, por exemplo, que será o tema da primeira reunião do Seminário, dia 10. Eles vão sendo substituídos pela fé no sistema. Entendemos que «democrático» é uma qualidade que pertence ao Estado, não a nós mesmos. Ele tem de ser «democrático» por nós.
Mais ainda, examinando brevemente uma grande polêmica do Brasil, a das urnas eletrônicas, parece que uma das grandes qualidades do Estado «democrático», no nosso senso comum, é «funcionar», funcionar como uma máquina. Terceirizamos nossas qualidades para o Estado, e esperamos que ele funcione. Assim, não espanta que, hoje, questionar as máquinas que são as urnas eletrônicas seja o equivalente a questionar… a própria «democracia».
INSCRIÇÕES NO SEMINÁRIO DE TECNOLOGIA
Quatro reuniões por Google Meet: 10, 17, 24, e 31/07, das 20h às 22h.
Pagamento via PIX: R$ 400 para ps@pedrosette.com. Se for assinante pagante da newsletter, R$ 365. Envie um email para ps@pedrosette.com ou responda esta mensagem.
Para fazer o pagamento por cartão (com o valor de R$ 420, nada a ver com o STF), use este link. Mesmo fazendo o pagamento por cartão, envie um email para ps@pedrosette.com. Se for assinante pagante da newsletter, há um cupom de desconto abaixo.
Envie seu número de celular para ser incluído no grupo do WhatsApp.